Saci pererê
4 de junho de 2016
Curupira
4 de junho de 2016
Deixe-me ver — pediu o fotógrafo, saindo do banheiro ainda enxugando a cabeça depois de quase meia hora de banho. — Desculpe a modéstia, mas seu amigo aqui sabe muito como tirar fotos, não sabe?

— Não deveria ter dito nada. É só um elogiozinho e você já fica todo cheio de si.

— Não é preciso nada disto. Sei do meu talento com esta coisa! — exclamou Marcos com a máquina fotográfica na mão e exibindo um sorriso que lhe era característico.

— Devo me render. Estas realmente ficaram, diríamos assim, acima da média.

— Acima da média?!  Bem se vê que de fotos você entende pouco.

— Como você sabe, meu negócio é o texto. Com a caneta faço o que você faz com esta coisa aí — disse Alencar se referindo ao instrumento de trabalho usado pelo amigo.

— Cada um com seu talento, amigo.

— Quer dar uma olhadinha no texto?

— De jeito nenhum. Confio em você.

— Você confia, ou não tem competência para avaliar o que eu escrevi? — indagou também sorrindo o amigo.     

— Para saber se um texto é bom ou não, não é preciso ser um escritor, tem que ser é um bom leitor, acho.

— Nisto você tem razão.

Marcos e Alencar eram jornalistas brasileiros, mas que prestavam serviço para uma revista de renome internacional. Estavam na Amazônia há quase um mês para uma reportagem sobre as várias faces da cultura da região. Já haviam navegado mais de mil quilômetros pelo Rio Amazonas, registrando a grandiosidade daquele mundo.

Na Amazônia, tudo de fato é monumental. O rio em si é curso d’água de dimensões inimagináveis. A floresta, com seu denso e eterno verde, é algo indescritível. Ali, em cada curva daquele mar de água doce, esconde uma lenda, uma fantasia, um mistério. A viagem começou por Manaus, às margens do Rio Negro, até onde foram de avião. A partir dali, desceram para o Amazonas e começaram a navegar em direção à sua foz. O objetivo da reportagem não era mostrar a exuberância da floresta ou a magnitude do grande rio, mas a gente daquele lugar, seus costumes e sua incrível capacidade de sobreviver em um mundo tão isolado de tudo que julgamos indispensável à vida. Iam, de lugarejo em lugarejo, em barcos alugados e muitas vezes em embarcações de passageiros.

Já haviam percorrido centenas de quilômetros e ouvido inúmeras histórias, algumas, sem dúvida, interessantíssimas. No entanto, nenhuma se compara a fantástica história do Boto Cor-de-Rosa. Ela é, indiscutivelmente, a mais conhecida de todas as lendas da Amazônia. Não há um ribeirinho sequer que não a saiba de cor. Mas trata-se de uma lenda, nada mais que isto, assim como a da Vitória-Régia e tantas outras que encantam a todos que ali chegam.

    Naquele momento, estavam em Parintins, já próximo ao estado do Pará. Nesta cidade acontece um dos maiores espetáculos folclóricos do mundo e as festividades teriam início dali a alguns dias. Talvez ali estivesse o ponto alto de todo o trabalho a que os dois jornalistas estavam realizando.

Naquela mesma noite, na periferia da cidade, aconteceria um baile e era para ali que iriam dali a pouco. Cada uma daquelas pequenas festividades estava sendo fotografada, documentada de todas as formas. Para cada uma estavam sendo produzidos textos que, mais tarde, se associariam às fotografias. Seria provavelmente a maior reportagem sobre a cultura daquela gente publicada em uma revista de projeção internacional.

— Onde estão as outras? — procurou saber Alencar, enquanto ainda mantinha diante dos olhos as fotos tiradas no dia anterior.

— Na caixa, debaixo da cama. O que quer com elas?

— Tem um negócio aqui que estou achando estranho — observou o jornalista.

— O que é?

— Me dê lá as outras fotos que eu lhe mostro.

Imediatamente, as centenas de fotos tiradas ao longo da viagem foram espalhadas por sobre a cama. Delas, Alencar destacou cinco e as tomou nas mãos.

— Veja isto.

— O quê? 

— O que há em comum em todas elas?

— Todas são de bailes ou festas dançantes.

— Exatamente.

— E o que tem isto?

— Não é apenas isto que elas têm em comum.

— E o que é, então?

— Observe este sujeito — comentou Alencar, apontando para uma pessoa no canto de uma das fotografias.

Era uma pessoa bem vestida, de terno e chapéu preto. Estava de costas, mas não havia qualquer dúvida de que se tratava de um homem ainda jovem.

— E o que tem isto? Há vários homens semelhantes a ele nesta festa. O que quer me mostrar afinal?

— Agora veja esta — pediu o jornalista.

— Sim — disse Marcos ao ver a outra foto. — O que tem de errado aí?

— De errado não tem nada, meu amigo, mas tem alguma coisa muito estranha aqui.

— Não estou vendo nada de estranho como você diz.

— E esta.

— Não estou entendendo.

— E mais esta — falou Alencar ao entregar a última das fotos ao colega de trabalho.

— Espere! Já sei o que está tentando me mostrar. Trata-se deste homem, não?

— Exatamente. Ele está em várias das fotos que você tirou.

— E o que tem isto demais?

— Nada se fossem feitas na mesma cidade. Tem gente que é mesmo arroz de festa, está em todas, mas não neste caso.

— É verdade! Meu Deus, como percebeu isto?

— Só percebi à medida que as fotos iam sendo reveladas. O curioso é que nunca o percebi por onde passamos.

— É que não tinha este objetivo, ora.

— Veja. Ele nunca foi fotografado de frente, está sempre de costas. Até parece de age assim de propósito, que não quer mostrar o rosto. Mas não há dúvidas de que se trata da mesma pessoa, não? Mas não é possível que seja a mesma pessoa — ponderou Marcos.

— É estranho mesmo, mas só pode ser, ora.

— Deixe-me ver aqui umas destas fotos — pediu Marcos, olhando o verso das fotografias.

Uma a uma elas foram sendo observadas e conferidas as respectivas datas. Entre uma e outra havia mais de quinze dias e uma centena de quilômetros de distância. A primeira foi feita em uma cidadezinha próxima a Manaus e a última já no estado do Pará, a mais de duzentos quilômetros.

— Não é possível! — concluiu Marcos. — Se tivessem sido feitas na mesma semana ou em uma cidade perto tudo bem, mas...

— Não sei o que está acontecendo, mas é o mesmo homem, não tenho nenhuma dúvida disto — voltou a afirmar Alencar.

— Quem sabe trata-se de uma figura típica da região. Não tínhamos o malandro lá no Rio de Janeiro? Ele também se vestia de maneira especial. Sempre de chapéu, terno branco...

— Não sei não — disse Marcos, pensativo. — Tem alguma coisa muito estranha acontecendo por aqui.

— A que horas o rapaz que vai nos levar para um passeio pela cidade ficou de vir? Já são quase nove horas — disse Alencar, consultando o relógio.

— Já deveria ter chegado. Vou ligar para a portaria do hotel. Talvez esteja lá embaixo nos aguardando.

Depois de algumas poucas palavras ao telefone, Marcos anunciou:

— Está lá embaixo. Não disse.

—Vamos então.

Dez minutos depois, estavam os dois jornalistas sendo conduzidos por Tiago Lopes, um guia turístico da cidade. Iam em um táxi tomado à porta do hotel.

Era início do mês de junho, e, Parintins àquela altura, já estava tomada pelas cores vermelha e preta.

— Meu Deus! Jamais poderia imaginar que, encravada no meio de uma selva desta, houvesse um lugar tão bonito — disse Marcos depois de alguns minutos de passeio.

— Parintins é uma grande cidade, tem hoje mais de cem mil habitantes — informou o guia.

— Já havia ouvido falar que as pessoas pintavam até as casas de vermelho e azul, as cores dos dois bois, mas não sabia que era assim.

— Afinal, se ouve tanto falar neste espetáculo, mas eu mesmo não sei quase nada a respeito — comentou Alencar. — Como foi que surgiu isto por aqui?

— Como muitas histórias por aqui, esta também é uma lenda, mas que tomou vida e todos os anos é encenada com uma riqueza muito grande. O ponto alto da festa é a encenação da "morte do boi". A história é até muito simples. O povo é que a tornou grandiosa. Conta-se que uma mulher de nome Catirina estava grávida e desejou comer língua de boi. O marido, Francisco, com medo do filho não nascer com saúde, satisfaz o desejo da esposa e mata o boi de seu patrão. O fazendeiro descobriu e resolveu prender o tal Francisco com a ajuda dos índios. Depois de muito sofrer, o coitado foi salvo por um padre e pelo pajé de uma tribo das proximidades. O pajé, compadecido do sofrimento do homem, fez lá umas rezas e conseguiu ressuscitar o boi. O que comemoramos aqui é justamente a ressurreição do animal.

— Interessante — concluiu Marcos.

— Hoje, são dois bois, o azul e o vermelho. Por isto, por aqui, quem não é vermelho, é azul. Não há outra opção. São como times de futebol, acho. É uma paixão para todos nós — voltou a dizer Tiago.

— O problema é que não se tem muitas opções — disse o motorista de táxi rindo. — Os times de futebol nos dão mais opções.              

— Isto é verdade — concordou Marcos, enquanto preparava a máquina fotográfica para registrar a beleza de uma igreja.

— Esta é a Igreja de Nossa Senhora do Carmo — voltou a dizer o guia.

— Muito bonita — comentou Alencar.

— Beleza vocês vão ver no dia da apresentação dos dois bois-bumbás. Vocês, que estão acostumados com o carnaval do Rio, precisam ver o que fazemos por aqui. E ainda temos uma vantagem: temos duas torcidas mais fervorosas que torcidas em dia de Fla-Flu no Maracanã.

— O que é que temos ali? — procurou saber Marcos ao ver do lado direito da rua um local repleto de pessoas.

— É uma casa de shows.

— Que tipo de show?

— Dança. Querem dar uma olhada?

— E por que não? — animou-se Alencar.

Imediatamente o táxi procurou um local adequado para estacionar. Ainda não era dez horas, mas a casa já estava cheia. A maioria das pessoas que ali se encontravam eram turistas que na cidade estavam para os festejos daquele mês. Imediatamente foram atendidas por um rapaz que os conduziu a uma mesa, aparentemente, a única vazia. Diante deles, meio encoberto pelas pessoas que dançavam, estava o palco, vazio àquela hora. O som que embalava aquela pequena multidão vinha de possantes caixas acústicas dispostas de ambos os lados do palco.

Na pista, dezenas de pessoas dançavam animadamente. A maioria absoluta era jovem e aparentemente estava se deliciando, apesar de ser aquele estilo de música diferente de tudo que se ouvia em outras regiões do país.

— Vou dar uma volta e tirar algumas fotos — avisou Marcos pondo-se de pé.   

Menos de dois minutos depois, estava de volta. Tinha no rosto uma expressão estranha.

— O que foi que aconteceu? — procurou saber Alencar, ao ver o amigo de volta tão rapidamente.

— Você não vai acreditar, mas acho que fotografei alguém ali que você conhece.

— De quem está falando? — perguntou o jornalista sem deduzir de que o amigo falava.

— Venha ver — pediu Marcos, puxando o companheiro de trabalho pelo braço.

— De quem você está falando? — indagou Alencar, quase aos gritos, para que fosse ouvido.

— Veja você mesmo.

— Onde?

— Junto ao palco.

— Não estou vendo ninguém conhecido — declarou Alencar, depois de alguns instantes.

— Ele estava ali, dançando com uma garota vestida de vermelho — disse Marcos decepcionado.

— Você está falando do...?

— Exatamente. Estava ali ainda agora.

— Tem certeza?

— Claro. Estava usando o mesmo terno cinza e o mesmo chapéu preto de abas curtas. Quem mais usaria um chapéu daqueles em um lugar deste? É ele, tenho certeza absoluta.

— Deve estar por aí, então. Não deve ter saído. Vamos ver se o encontramos. Conseguiu bater alguma foto dele?

— Tirei várias fotografias, mas dele, especificamente, não. Quando o vi, achei melhor chamá-lo. Mas não tenho dúvidas de que se trata da mesma pessoa.

— Como é possível?! Estamos a mais de quatrocentos quilômetros do lugar onde apareceu pela primeira vez.

— Tem alguma coisa errada em tudo isto — concluiu Alencar, depois de alguns segundos.

— Vamos dar uma volta por aí. Deve estar dançando. Não vai ser difícil de ser reconhecido, você vai ver. Está usando a mesma roupa de sempre.

A busca foi em vão. Depois de minutos, desanimados, voltaram à mesa e se sentaram. Ali estava o guia aguardando pelo retorno de ambos.

— E então, encontraram mesmo alguém que conhecem? Não é de estranhar, meus amigos. Aqui vem gente de todas as partes, não só do Brasil, como do mundo inteiro.

— É, mas a pessoa que achei ter visto aqui, nós a conhecemos aqui mesmo na Amazônia.

— Algum repórter como vocês, ou alguma moça? Olha que o que não falta por aqui são mulheres belíssimas, como vocês já devem ter percebido.

— É, mas não é uma coisa nem outra — disse Marcos. — É alguém que aparentemente está nos seguindo desde o início de nosso trabalho.

– Seguindo vocês?! Não estou entendendo — declarou Tiago, mostrando-se preocupado.

— Isto mesmo — disse Alencar.

— E por que alguém estaria seguindo vocês?!

— Seguindo, não seria o termo certo — acudiu Marcos.

— Agora é que não entendi mesmo.

— Trata-se de um homem que apareceu em diversos lugares por onde passamos — tentou explicar Alencar.

— Um homem?! E como têm certeza de se tratar da mesma pessoa? — indagou o guia turístico. — Por aqui, o que não falta, são pessoas parecidas umas com as outras. Somos quase todos descendentes de índios, com esta cor maravilhosa aqui — adicionou Tiago, exibindo os braços morenos.

— Temos certeza de que é a mesma pessoa.

— Mas vocês não estavam há dias lá perto de Manaus?! Como pode esta pessoa ter vindo de tão longe? A menos que ele também seja um jornalista — brincou Tiago.

Sem dizer mais nada, Alencar enfiou a mão no bolso e exibiu uma foto ao guia, indagando:

— Já viu este homem por aqui?

— Que homem? — estranhou Tiago ao ver diante dos olhos uma grande quantidade de pessoas.

Era uma foto de algum baile ou festa dançante.

— Este — apontou Marcos, indicando com o dedo indicador a pessoa a quem se referia.

— Está de costas, como posso dizer se o conheço ou não?

— Mas alguém vestido com estes trajes seria fácil de ser reconhecido. Pelo menos, viu alguém usando um terno e chapéu como estes?

— Não. Nunca — declarou Tiago, depois de alguns instantes.

— Pois é, meu amigo, esta pessoa já apareceu em várias fotos que tiramos ao longo de nossa viagem.

— E como podem afirmar que se trata da mesma pessoa?

— Ninguém se veste desta forma e vai a todas as festas por aí, ora. Só pode ser o mesmo cara.

— Realmente, hoje em dia, não se vê por aí gente de terno e chapéu. Isto é coisa da década de trinta — concordou Tiago, olhando atentamente para a fotografia. — Não conseguiram fotografá-lo de frente nem uma vez?

— Não. Temos, acho que cinco fotos, mas, em todas, ele só aparece assim, de costas — informou Marcos.

— É que só percebemos a presença dele nas festas onde estivemos, hoje à noite, quando revimos algumas fotografias — disse Alencar. — Se já o tivéssemos visto antes, teríamos tentado fotografar o seu rosto.

— Muito estranho mesmo, mas, com certeza, se trata de pessoas diferentes — afiançou Tiago. Como seria possível a mesma pessoa estar em locais tão distantes com uma diferença de tempo tão curta e, além do mais, usando sempre a mesma roupa?

— Isto eu não faço idéia, mas estamos quase certos de que se trata da mesma pessoa — concluiu o jornalista.

— Bobagem! Não pode ser! — disse Tiago pensativamente.

— De que está falando? — procurou saber Alencar ao ver o guia turístico, aparentemente metido em algumas reflexões.

— Estava aqui com umas idéias estúpidas — declarou Tiago. — Mas são besteiras.

— E podemos saber que idéias são estas? Tem algo a ver com o que está acontecendo por aqui?

— Achei que tivesse, mas vejo que é uma estupidez de minha parte. Besteira, só isto.

— E podemos saber a que você está se referindo? — insistiu Marcos.

— Já ouviram falar na lenda do Boto Cor-de-Rosa? — indagou o guia turístico.

— Claro, quem ainda não ouviu? — disse Alencar, estranhando o rumo que a conversa estava tomando. — Mas, o que tem isto a ver com o que está acontecendo por aqui?

— O que está querendo dizer? — perguntou Alencar. — Se está querendo relacionar este homem que temos fotografado com a lenda do Boto, realmente, me desculpe, mas é mesmo besteira.

— Desculpem, foi só um pensamento que andou aqui pela minha cabeça.

— Mas, que tem algo estranho em tudo isto, ah, isto tem — falou Marcos enquanto se servia da bebida que estava sobre a mesa.

— Já ouvi muitas histórias sobre este personagem. Todos nós acreditamos que se trate mesmo de uma lenda, mas como todas elas combinam fatos reais e fantásticos... — falou Tiago

— Isto é bobagem, como você mesmo disse — externou Marcos.

— É, mas para muita gente, as lendas têm sempre um cunho de verdade. Em todos os lugares do mundo, elas fornecem, muitas vezes, explicações lógicas e, até certo ponto, aceitáveis para coisas que não têm explicações científicas comprovadas, como acontecimentos misteriosos ou sobrenaturais.

— E  acha que é isto que está acontecendo por aqui? — inquiriu Marcos.

— Há um mistério, como vocês mesmos me disseram. Como acham que pode ser explicado tudo isto? Tem lógica, uma pessoa estar assim em tantos lugares diferentes e em tão pouco espaço de tempo?

— Isto tudo é uma loucura — desabafou Alencar.

— Também acho tudo isto muito esquisito, mas seria a única explicação para o que está acontecendo. A menos que...

— A menos que, o quê? — indagou Marcos curioso.

— Tenha alguém querendo brincar com vocês.

— Brincar conosco?!

— É. Uma pessoa que saiba onde vocês vão e chegue lá primeiro. Quando saíram do Rio disseram para onde estavam indo?

— Claro. Muita gente sabe muito bem onde estamos.

— Então.

— Mas quem gastaria tanto dinheiro e perderia tanto tempo apenas para brincar conosco desta forma? Não, isto é impossível! — sentenciou Alencar.

— Também acho isto — concordou Tiago. — Mas se não há alguém tentando fazer uma brincadeira e, se este homem, está mesmo nos lugares por onde vocês têm passado, só há uma explicação: ele é o Boto Cor-de-Rosa.

— Isto é uma loucura! — desabafou Marcos. — Não estamos aqui falando de uma narrativa fantástica ou de uma lenda. Este sujeito é verdadeiro e estava ali há poucos minutos. Boto Cor-de-Rosa é uma destas muitas invencionices do povo.

— Então, me dê uma explicação para o que está aocntecendo, meu amigo — pediu o guia turísitico. 

— Eu não tenho nenhuma. Mas daí, até acreditar em uma história destas, vai uma grande distância.

— Seja lá o que for, me diga por que acha que ele seja o tal Boto? — perguntou Alenacar, mostrando-se mais receptivo quanto à idéia de Tiago.

— Vocês conhecem a verdadeira história do Boto?

— E existe uma história verdadeira? — pergtuntou Marcos, mostrando-se mais uma vez desconfiado.

— Acho que sim. Todas as lendas devem ter uma primeira versão que é verdadeira, não?

— Não sei — declarou o fotógrafo. — Para mim, é tudo fruto da imaginação de alguém que não tinha muito o que fazer.

— História nenhuma sai assim do nada. Sempre precisa de um motivo para nascer.

— É, mas isto não quer dizer que seja verdade — adicionou Alencar com um sorriso.

— Dizem que, certas mentiras, de tanto serem repetidas, viram verdades — disse Tiago. — E, quando um povo conta a mesma história, não há porque não crer que ela seja verdadeira.

— Considerando este seu ponto de vista, até que concordo.

— Pois bem, a primeira vez que ouvi falar sobre esta figura tão popular por aqui eu ainda era uma criança. Foi quando uma minha prima ficou grávida.

— Grávida?! O que tem isto a ver com a história do Boto? — procurou saber Marcos.

— Tudo.

— Como assim?!

— Vocês são jornalistas e devem saber sobre a incidência de gravidez na adolescência aqui no Brasil. Não tenho dados atualizados, mas há nais ou menos dez anos, cerca de 20% das crianças que nasciam em nosso país, eram filhas de adolescentes. Aqui, nesta região norte, a situação deve ser mais grave ainda. Uma pesquisa feita em todo o país, naquela época, mostrou um dado alarmante: 14% das adolescentes já tinham, pelo menos, um filho e as jovens mais pobres apresentavam fecundidade dez vezes maior. Esta gente que vive às margens dos nossos rios não tem como evitar filhos e, muitas destas meninas, nem têm informação a respeito de métodos contraceptivos.

— E o que tem isto a ver com o que estamos falando? — interrompeu Alencar.

— Muitos pais como forma de justificar a gravidez de suas filhas, creditam a culpa ao pobre do Boto Cor-de-Rosa.

— Quer dizer que ele é pai de milhares de crianças que nascem todos os anos? — perguntou Marcos.

— É isto que diz a lenda — completou Tiago.

— Boa maneira de se livrar de uma culpa, hein? — brincou Alencar, achando aquela história muita estranha.

— E como ele faz isto? — quis saber Marcos.

— Contam que, ao entardecer, o Boto Cor-de-Rosa sai dos rios e se transforma em um belíssimo e sedutor moço. Aí, ele vai a busca de uma jovem para namorar.

— Meus Deus! Até onde vai a imaginação deste povo — comentou Alencar, atento à narrativa.

— Além de galante e sedutor, o boto dança como ninguém e enfeitiça as meninas indefesas.

— Quer dizer que ele é um bom dançarino?

— Dizem.

— Então isto explicaria porque ele está em todas as fotos que fizemos de festas? — perguntou Marcos, agora se mostrando curioso.

— Estão vendo porque eu me referi a ele?

— Quando chega a madrugada, o rapaz namorador volta para o rio, onde se transforma de novo em boto.

— Quanta imaginação! — exclamou o jornalista.

— É isto que dizem por aí para justificar tantas meninas grávidas e que não podem identificar os próprios pais das crianças.

— Quer dizer, então, que o pobre do boto é que leva a culpa por esta mazela social?

— É verdade. Coitado! — concluiu Tiago.

Já passava da meia noite quando os dois repórteres regressaram ao hotel.

Os dias seguintes foram gastos em visitas à cidade e à algumas ilhas nas proximidades. De Parintins, os dois jornalistas seguiriam em direção a Belém, a última etapa do trabalho que estavam realizando. Permaneceram ali apenas para registrar os festejos que teriam início no dia 28.

As andanças pela cidade e pelos arredores eram feitas sempre em companhia de Tiago. Aos poucos, os dois jornalistas foram percebendo que aquele rapaz não se limitava às informações básicas sobre aquele povo e aquele lugar único no mundo. Era um estudioso das tradições daquela gente e um profundo conhecedor da geografia daquele lugar. Conhecia, como pouca gente, aquele mundo singular, isolado de tudo.

— Este pessoal aqui é mais fanático por esta festa que nós por nossos times de futebol — comentou Alencar, ao ver que até alguns trechos do asfalto de algumas ruas estavam pintados nas cores vermelha e azul. 

— O curioso é que, a cada ano, recebemos mais turistas e vamos nos aperfeiçoando no que diz respeito às apresentações. É uma festa lindíssima. Em minha opinião, não ficamos devendo nada ao carnaval do Rio e de São Paulo.

— Tem uma coisa sobre esta festa que sempre quis saber — comentou Marcos de repente.

— O quê?

— Por que um boi se chama Caprichoso e o outro Garantido? Que nomes estranhos são estes?

— O que sei é que tem origem em uma grande paixão de um poeta chamado Emídio Vieira pela mulher de um repentista aqui da região de nome Lindolfo Monteverde. Ambos eram artistas e apresentavam seus bois todos os anos.

— Este negócio de boi é que nunca entendi direito — comentou Alencar.

— Esta é uma festa de origem nordestina e que enfoca, basicamente, a ressurreição do tal boi que foi morto pelo marido para dar a língua do animal à mulher. Do nordeste, a festa espalhou-se pela Região Amazônia. A origem é a mesma, portanto, o que difere, é que aqui as coisas tomaram uma dimensão muito maior, acho que por ter se associado à cultura indígena.

— Não sabia disto — voltou a falar Marcos. — Mas, continue contando a história dos dois homens.

— Como não podia ficar com a esposa de Monteverde, por motivos óbvios, Emídio talvez tenha pensado em conquistá-la usando a sua arte. Desta forma, o poeta lançou um desafio ao rival: “Se cuide — disse ele —, que, este ano, eu vou caprichar no meu boi.”.

Não se sentido intimidado de forma alguma, e, sabendo das segundas intenções do concorrente, Monteverde respondeu enfaticamente: “Pois, capriche, que eu me garanto.”. Aí está a origem dos nomes dos dois azul e vermelho.

— Acho que pouca gente sabe disto, não? — comentou Alencar.

— É verdade. A maioria das pessoas está preocupada mesmo é em fazer uma festa maravilhosa. Estes detalhes ficam com a gente que estuda as tradições de nossa gente. 

— E como isto chegou até nossos dias? — indagou Marcos.

— A rivalidade evidentemente cresceu entre os dois e, a cada ano, um queria se apresentar melhor que o outro. Naquela época, havia muitos outros grupos, mas todos foram ficando para trás. Somente o Garantido de Monteverde e o Caprichoso de Vieira chegaram aos nossos dias.

— Muito interessante — disse Marcos, parando diante de uma casa totalmente pintada de vermelho.

— Hoje, existem regras que são seguidas, inclusive pelas torcidas. Uma delas é que jamais uma torcida pode vaiar a apresentação do grupo rival. E seguem isto à risca. Outra coisa interessante é que quando um torcedor do Garantido quer se referir ao Caprichoso, por exemplo, ele jamais menciona o nome do adversário, diz apenas “o contrário”. E vice-versa. Os músicos que tocam no Caprichoso formam a Marujada, enquanto os do Garantido são a Batucada. E por aí vai. Portanto, se preparem para assistirem a um dos maiores espetáculos de folclore do mundo, meus amigos.

— O que temos para hoje à noite? — procurou saber Alencar, se dirigindo ao guia turístico.

— Querem ir ao último ensaio das apresentações?

— E podemos?

 

 

— Vou conseguir uma maneira de vocês assistirem. Tenho um amigo que é gente importante no Garantido. Não permitem que nenhum estranho esteja presente, mas vou pedir a ele para que vocês possam assistir.

À noite, por volta das nove horas, Tiago, em companhia dos dois jornalistas, se encontravam nas arquibancadas de um ginásio de esportes. Diante deles, uma verdadeira multidão tentava se organizar. Eram milhares de pessoas. 

— São mais de cinco mil participantes em cada um dos bois — anunciou Tiago.

De repente, o som contagiante da batucada tomou conta de tudo. Era um som ritmado, impecável, grandioso.

— Meu Deus! — exclamou Alencar. — Nunca pensei que fosse ver algo desta natureza.

— Se prepare para manhã, meu amigo. Você vai em um dos maiores espetáculos da terra — afirmou Tiago.

A multidão era composta por gente de todas as idades e vestida com roupas de todas as cores. No entanto, até naquele momento, muitos já usavam as cores tradicionais de sua agremiação: o vermelho e o branco.

Estavam os dois jornalistas ali entretidos com o som cadenciado dos instrumentos e com o dançar frenético de algumas bailarinas quando Marcos percebeu algo que lhe chamou a atenção.     

— Alencar, veja aquele sujeito lá.

— Onde?

— Perto do portão de entrada.

— Não acredito! É ele. Até aqui?

— Não é nas festas que ela aparece?

A pessoa a que estavam se referindo trajava o mesmo terno e usava o mesmo chapéu preto de sempre.

—Vamos lá. Não é possível que desta vez ela vá escapar — disse, decido, Alencar.

Imediatamente os dois rapazes desceram escadas abaixo correndo em direção ao local onde se encontrava o sujeito. Mas, de imediato, perderam o contato visual com ele, perdidos que ficaram em meio à multidão.

— Vá para o portão. — ordenou Alencar. — É a única saída. Se tiver que deixar o local é por lá que vai sair. Aí nós o pegaremos. E se o vir, tente fotografá-lo de frente!

Com dificuldade, Alencar desvencilhou-se daquele mar de gente e chegou até onde queria. Ao atingir o portão, percebeu que uma pessoa corria em direção à rua em frente. Não teve dúvidas de quem se tratava. Era a pessoa que, instantes antes, fora vista no interior do ginásio. Não titubeou e partiu atrás dele. Agia por instinto, como se conseguisse alcançá-lo, teria respostas para todos os seus questionamentos.

  Foi uma corrida de poucos minutos. Não demorou e diante deles surgiram as águas escuras do lago Macurany. Imediatamente Alencar se deteve. Contudo, a estranha figura continuou a corrida desenfreada até a margem. De onde estava, a cerca de cem metros, o jornalista podia apenas perceber a sua silhueta esguia.

O jornalista respirou fundo e esperou pelo que poderia acontecer. Lá adiante, o homem olhou para trás, retirou o chapéu num gesto de cortesia e mergulhou na escuridão da noite e nas águas frias do lago.

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